manual de observação ...do tempo, do lugar, das coisas...

            Tempos pandêmicos, dilatados, recolhimento, receio, indefinição... As artistas, em seus ateliês, observam... A dinâmica da produção muda, já que o recolhimento ao espaço de trabalho se torna diverso, sem alternância com o outro, o da rua.
            Em paralelo à sua obra em desenvolvimento, com anos de prática e pesquisa, Gisel Carriconde Azevedo monta um observatório do jardim da casa, localizado na varanda de seu quarto. De lá, à maneira dos artistas viajantes do século XIX, retrata o desconhecido-familiar: o pátio, a folhagem, o mesmo, todo dia diferente, sua própria morada. Parte de sua experimentação com aquarela (que contaminou todos os habitantes da república onde vive, durante o isolamento), a série #pinturinhaslíquidas: Jardins da Burguesa, vem se somar a Morada do Sol 360º, resultado de outra solidão, em 2019, na paisagem da Chapada dos Veadeiros. E, em sua viagem em torno do ateliê, desdobra sua observação no oposto à suavidade da liquidez: pinturas mínimas, extremamente matéricas, que sonham o jardim, pela abstração, suas #pinturinhassólidas: Jardins da Burguesa.
            Em outro ponto da cidade, Suyan de Mattos provoca um movimento online com o projeto 40Antenas e algumas Parabólicas (em parceria com outro habitante daquela casa do jardim documentado, Hilan Bensusan), arte para tempos confinados. Dessa plataforma virtual, o seu observatório, começa a acompanhar a produção de aquarelas na República Burguesa, assim como as de outros artistas, em outras ilhas-ateliês. As ferramentas de sua pesquisa estão centradas em sua cesta de linhas e agulhas, sua paleta atual. A produção, durante a pandemia, desenha o mundo com fios. Assim surge Bordado hospeda Aquarela, releitura paradoxalmente livre e fiel aos originais, que a artista experimenta com pintura de agulha. As primeiras e mais persistentes experiências desse diálogo se dão justamente com as que surgem dos pincéis de Gisel.
            Daí que a proximidade entre cada aquarela e aquele que a hospeda (o bordado) resultou em um belo e estranho diálogo. Se as pinturas do jardim têm, cada uma, seu correspondente em tecido, no desdobramento de sua interpretação, Suyan experimenta, no caso das pedras da Morada do Sol, uma justaposição de imagens, uma síntese talvez, em dois bordados que leem a série toda. Aí, ela se apropria radicalmente das imagens da outra, deixando claro, porém, a sua filiação ao referencial.
            Podemos depreender dessa conversa deslizante, entre Gisel e Suyan, um percurso de olhares: daquele que se lança ao horizonte e dele se apropria como documentação do mundo, ao outro, que se imiscui na transposição poética da natureza e com ela faz abstração que se propõe a espelhar uma obra com outra. Somos então, provocados a produzir, com a nossa leitura, uma nova camada em tal operação e com ela constituir nossa versão.  Em um movimento pendular, somos instigados a ver as obras como um só tecido, mas também em sua independência. Abordar cada resultado do olhar-observador das autoras, tensiona essa teia. Mas também nos convida a vermos uma única sentença, a fazermos nossas próprias relações.
            Tal conversa, à distância e ao longo de mais de um ano, resulta nesse “manual de observação”.

Marília Panitz
Ralph Gehre

Exposição: “manual de observação”, 2021
Referência Galeria de Arte (Brasília)
Projeto em parceria com Suyan de Mattos
Curadoria de Marília Panitz e Ralph Gehre