Para Nilce Eiko, 2019
Tecido japonês, pregos, autorretrato e luminária
260 x 110 x 280 cm

            Conheci a Nilce em 2000. Naquela época, ela já era um nome familiar no meio artístico de Brasília, mas eu havia estado fora alguns anos e recém começava a me situar na cidade. Na abertura de uma exposição nos Correios, Walter Menon apresentou-nos e insistiu que precisávamos conhecer o trabalho uma da outra; a Nilce, no entanto, mostrou-se um pouco reticente, desconversou, e a sugestão ficou no ar. Surpreendentemente, no final da noite ela estava me esperando na porta da galeria e me convidou para tomar um chá na casa dela. No carro, durante todo o caminho, ela me cobriu de perguntas: sobre a minha vida, sobre os meus amigos, sobre o meu trabalho e os meus estudos... Deduzo hoje que foi uma espécie de teste, para se certificar de que realmente eu fazia jus a entrar na vida dela.
            Ela morava numa quitinete localizada em uma sobreloja na SCLRN 706, cuja janela dos fundos dava para o beco onde fica hoje o Elefante Centro Cultural, na época residência do Gladstone Menezes e do José Eduardo Garcia de Moraes, amigos e parceiros de trabalho dela. Assim que entramos, comecei a entender o porquê da hesitação com relação a mim. O cômodo principal, um único espaço que funcionava simultaneamente de  sala, quarto e cozinha, reunia e integrava todo os objetos do mundo da Nilce: discos, livros, fotos, desenhos, roupas, louças, pincéis, miniaturas, bijuterias etc., espalhados pelas superfícies da casa — paredes, chão e mobiliário — de modo nada casual, formavam uma inquietante exposição, uma espécie de gabinete de curiosidades dentro do qual a Nilce vivia. Fiquei vários dias sob o impacto daquele encontro; com certeza havia afinidade estética entre os nossos trabalhos, mas artistas como a Nilce, onde a fronteira entre arte e vida é um borrão indefinido, são tão originais que estão quase sempre destinados à solitude imposta pela sua própria singularidade.  
            A partir desse primeiro encontro, e ao longo dos próximos quinze anos, eu e a Nilce mantivemos uma amizade, senão íntima, constante e de admiração recíproca. Para além das exposições nas quais participamos juntas e dos encontros nos eventos de arte da cidade, nossa relação foi de fato construída ao redor do chá e dos bolinhos, em conversas informais na casa dela ou na minha. Em agosto de 2015, em nosso último encontro antes dela adoecer, acertamos que o programa de exposições 2016 do deCurators seria inaugurado com uma instalação dela; eu tinha em mente, então, começar o ano com um ciclo em homenagem às “divas” de Brasília: mulheres que abriram caminho para a jovem geração de artistas feministas da cidade. No mês seguinte ao nosso encontro, fiquei sabendo que ela havia sido internada com pneumonia no Santa Helena. Fui visitá-la algumas vezes na UTI durante este período, e ela estava sempre otimista (e sempre levemente surpresa pela atenção que os outros lhe devotavam, sem muita consciência da própria importância); a última vez que a vi, no início de dezembro, ela estava saindo do hospital. Foi um encontro lindo, estávamos excitadas com a possibilidade de finalmente trabalhar juntas. Combinamos que em janeiro, assim que eu voltasse das férias, iniciaríamos as conversas sobre a produção da exposição no deCurators. Mas, pouco mais de uma semana depois, ela voltou para o hospital e se foi.
            Herdeiro de maior parte da produção da Nilce ao longo de quarenta anos, Gladstone Menezes esteve à frente de um admirável projeto de catalogação, restauração e exposição do trabalho da Nilce no Museu Nacional da República. A convite dele, deCurators participou com uma mostra paralela que reuniu trabalhos de quatro jovens artistas brasilienses — Mariana Destro, Yná Kabe Rodríguez, Laura Fraiz e Thalita Perfeito —, e uma instalação realizada por mim na vitrine do espaço, dedicada à exposição que nunca realizei com a Nilce. Ligados por uma temática comum — do universo feminino e do erótico —, meu desejo como curadora da mostra foi que as obras estimulassem a criação de vínculos imaginários entre pessoas, objetos, e contextos de diferentes eras, um lugar onde passado e presente pudessem, temporariamente, se encontrar.
            Obs.: Pesquisando o material biográfico da Nilce, encontrei algumas fotos do ateliê dela no início dos anos 1990. Em uma delas, pregada na parede entre desenhos, uma frase manuscrita, provavelmente destacada por ela de algum livro, anunciava: “A vida é um passo além do extremo”. Eu não sei se a Nilce jamais percebeu o quão perfeitamente sua vida encarnou esta máxima.


Exposição: “礼拝 Elegia para Nilce”, 2019
deCurators (Brasília)
Curadoria de Gisel Carriconde Azevedo